Costume

Acho que estou me acostumando...
Me acostumando de despedir do meu irmão sem achar que vou morrer a cada vez que ele vai embora...
Me acostumando a viver no aperto, na correria...
Me acostumando com o meu temperamento que, embora entre em escalas de erupção, se acostumou a viver no marasmo...
Me acostumando com as dores no pé, inevitáveis depois de um dia longo...
Me acostumando a ser eu, embora isso às vezes incomode...
Me acostumando...
Me acostumando...
Me amansando...
Me contrapondo...
Me educando...
Me amando...

A gente se acostuma

Marina Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

ACESSO

Penso que tudo é contra-senso
Penso que os sistemas não são lineares
Penso que somos lua, sol e vento
Penso que só somos felizes aos pares

Penso que já é tarde para dormir
Penso que ainda é cedo para acordar
Penso que deixamos a coisa fluir
Penso que há medo de parar

Tudo é contra-senso
Caos ordenado
Ordem caótica

Complexo
Reflexo
Convexo
Sexo
Anexo
Amplexo*
Acesso

*O uso da palavra amplexo foi só pra rimar mesmo...
Para os curiosos de plantão, aí vai o pai dos burros:
Amplexo é uma forma de pseudocópula no qual um anuro macho se coloca no dorso do uma fêmea, agarrando-a com as suas patas, enquanto esta faz a postura dos ovos. Nesta altura, o macho fertiliza os ovos com o fluido que contém os espermatozóides.

RIMAGENS.1985.Poesia de Alice Ruiz.Desenhos de Leila Pugnaloni

Como o vento...

Corro demais...
Corro pra dar tempo, corro por falta de tempo, corro por correr e corro para aprender, para vivenciar, para amar, para conquistar, para ser feliz, para dar certo...não tenho tempo...mas tenho sonhos, tenho desejos, tenho um mundo para conquistar...ou como diz Adélia Prado: "não tenho tempo algum, porque ser feliz me consome".
"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto."
Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares(heterônimo de Fernando Pessoa)
Subo neste altar “viver”
Então respiro e aceno para todos lá de cima...
Sinto uma leveza, uma brisa gostosa...
retorno à terra e ao pousar não me dói o peso de viver...
Não me doem as angústias, os dias de chuva, os dias de calor ardido, os dias de discórdias, os dias de glórias, a música do tempo...
Então retorno aos meus afazeres, às minhas preocupações e sou outra. Sou novinha em folha, sou bela, sou “sins”, “sou nãos” e sigo assim...me amando...

“A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção de meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas”. Fernando Pessoa