Queixas

Ana Flores


Ele mesmo dissera que se ela não estivesse satisfeita que fosse se queixar ao bispo. E ela foi. Contou tudo o que havia se passado entre eles: a acusação de ser ela a culpada dos pesadelos dele, os encontros só em dias sorteados no calendário, e não deixou de mencionar que ele não a queria com as unhas dos pés pintadas de vermelho, como ela sempre usara até conhecê-lo. Quando ela terminou, o bispo apenas disse, com a voz baixa e calma de quem passou a vida a ouvir queixas: "Volte hoje à noite, às dez. E venha com as unhas dos pés pintadas de vermelho."

Aniversário

Há exatos 27 anos começava a minha história...
História de conquistas, perdas, enganos, certezas, lutas, desistências, muitos risos, alguns choros, e muita, muita saudade...
Do que tenho saudades?
Saudades da minha infância, dos bolinhos de barro, das férias no pomar da avó, do pé de goiaba na frente de casa, cheiro de merendeira nova, suco de maracujá derramado, sonhos em ficar presa no supermercado e poder comer de tudo, certeza de que as férias eram tão longas que duravam um ano, acampamentos, entre mil coisas...
Saudades da espera ansiosa por meus pais chegarem do trabalho, das noites muito bem dormidas, das brigas e confidências com a Jú, das lutas e diversões com o Láucio, dos cuidados e preocupações com Priscila e Telma...
Saudades da minha adolescência, horas a fio com a Angel no telefone, barzinhos rock´n roll com Nina, conversas intermináveis com Carol na porta de casa comendo brigadeiro na colher, notas vermelhas no boletim, convite para me retirar da escola (um convite é mais bonitinho que expulsão, acho), dos exageros juvenis – verdades quase sempre massacrantes, mentiras que nos corroíam por dentro, dos “nãos” bem cantado por meu pai (respostas para os pedidos impossíveis de viagens, shows, etc...) que quase sempre eram revertidos em possíveis “então vai, sua chata. Insistente, não sabe ouvir não”...
Saudades dos meus vinte e poucos anos e a descoberta da liberdade, do lado bom da solidão, da importância do jornalismo e da escrita em minha vida, do homem que amo, da descoberta do desemprego e das desilusões, da descoberta de mim mesma e de minha personalidade forte, firme e ao mesmo tempo sensível...
Porque tenho saudades?
Porque são tempos que não voltam mais...o hoje é a era dos pequenos prazeres, das enormes preocupações e claro, da busca contínua por felicidade...
Não tenho saudades por achar o hoje ruim...ainda mais porque eu adoro o hoje e suas expectativas do amanhã...
Tenho saudades porque descobri algo muito revelador – a nostalgia é gostosa porque quando retornamos à nossa memória e às nossas vivências, estamos retornando para algo que nos traz prazer no hoje, no agora, ou seja, é o prazer real do “não vivenciar mais”, melhor, prazer nostálgico porque o hoje é mutável, e o passado, é imutável e lindo onde está – no ontem, no campo da memória....onde as tristezas de antes já não doem mais, o não preocupar de antes já não trazem danos, o divertir não tinha hora pra terminar, o sentir cheiros e brisas agradáveis não contavam tempo e dinheiro, e a gente sonhava com as conquista do hoje e rejeitava as dificuldades do agora...então está tudo certo, tudo previsto, tudo ou seja, tudo exatamente humano, com acertos e erros e tudo lindo...passado imutável, presente mutável, futuro planejável.
23 de fevereiro – minha história continua...
Finalizo este post com Rubem Alves, sempre um apoio inteligente ao que eu pensei em dizer e não consegui. “Ao final de nossas longas andanças, chegamos finalmente ao lugar. É o vemos então pela primeira vez. Para isso caminhamos a vida inteira: para chegar ao lugar de onde partimos. E, quando chegamos, é surpresa. É como se nunca o tivéssemos visto. Agora, ao final de nossas andanças, nossos olhos são outros, olhos de velhice, de saudade”. Disse também: “A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar” (...). “As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás...“ Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem”.